sábado, 24 de novembro de 2018

Greta Van Fleet: uma joia a ser lapidada por Giba Carvalho




     Bem antes do lançamento de Anthem of the Peacefull Army, os garotos da Greta Van Fleet já estavam causando o maior furor no mainstream musical por alguns aspectos bastante peculiares. De cara, posso citar a semelhança ao som que o Led Zeppelin fazia como banda. Guitarras pesadas, bateria marcante e agressiva, baixo ora flutuando, ora agredindo como uma cavalaria na hora da batalha, além dos vocais rasgados e melódicos. Outra coisa bastante similar com a lendária banda britânica é a idade precoce dos membros. Atualmente, o mais velho tem 22 anos. São garotos de uma cidade pequena no interior do Estado americano de Michigan, que não ficaram apenas no “curtir” Rock n´Roll. Eles meteram as mãos na massa e fizeram acontecer!

     O sonho deles teve início com a coleção de vinis do pai dos irmãos Kiszka. Nada mais bonito! Lá eles encontraram grande parte das bandas clássicas como The Who, The Rolling Stones, The Beatles e, obviamente, também o Led Zeppelin. Todo este DNA musical ficou guardado na mente dos caras e, na minha opinião, é extremamente normal que os mesmos utilizem o mesmo na hora de compor. A paixão pelos clássicos do Rock n´Roll é latente e perceptível desde o primeiro riff que escutamos. A propósito, vale salientar, que o nível de execução é bem superior ao da média. Notadamente, se compararmos a grande maioria das bandas que surgem a todo instante. Josh (Vocalista), tem um tom natural que parece mais uma mistura de Robert Plant e Geddy Lee, do que apenas com o vocalista do Zeppelin como propagado aos quatro cantos do mundo.

Uma coisa que me incomoda sobremaneira é a análise cada vez mais simplista para todos os temas possíveis na atualidade. No meio musical não é diferente. Não estamos pagando apenas com a ausência quase que completa da capacidade, que um dia foi normal, de interpretar textos. Pagamos, por exemplo, com pessoas que não sabem diferenciar os verbos influenciar e copiar. E é justamente isto que ocorre com a Greta Van Fleet. Assim como todo mundo que entra no ramo musical (e demais áreas) é normal cultivar influências. Na minha opinião, é excelente que os garotos mantenham vivo o legado sonoro dos dinossauros do Classic Rock. Até porque, quando os mesmos surgiram o mercado estadunidense era dominado pelo R&B (Beyoncé e cia ltda) e pelo Hip-Hop, que nunca deixaram de ser moda praquelas bandas. Ter influências não é crime!

     A propósito, tenho o dever de lembrar aos leitores, que o próprio Led Zeppelin foi acusado dezenas de vezes por supostos plágios, de diversos artistas, e, ainda assim, não deixou de ser reconhecida como uma das maiores bandas do mundo.


     Portanto, torço para que a Greta Van Fleet continue trilhando seu caminho de modo honesto e que o tempo traga um refino ainda maior para a promissora banda. O mundo do Rock n´Roll agradecerá!
    

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Reflexões sobre a Agonia do Eros - por Giba Carvalho



O encontro da minha nuca com aquele tapete branco foi algo similar a lava emergente de um vulcão de pensamentos encostando na neve acalentadora dos alpes. Definitivamente, eu não estava bem. Carrego dentro de mim algumas certezas, dentre elas: a que tudo que vale a pena nesta vida requer sacrifício, dedicação e levará algum tempo. O tempo de cada um ou como diria o Pessoa: “o tempo das coisas” (que não é o nosso). A vida não é algo fácil. Enquanto isso, olhos alheios às histórias lançam suas setas de fogo: “o tempo passa”, “as chances se vão”, “gente que vem e vai”, “perguntas que não foram feitas”, “respostas que não foram dadas”. Pressão  e mais pressão.

Há mais de um século Nietzsche teceu algumas palavras sobre o elemento contemplativo, como se fosse uma antecipação dos caminhos tomados pela civilização atual, dizia ele: “Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie .”

Nada tão vigente neste mundo que transmite a sensação de que as pessoas se tornaram “personas” virtualmente satisfeitas por exposição em demasia. Refletindo sobre isto, pus a me questionar: “O que é real numa vida exposta?” Após pensar bastante sobre tema, cheguei à conclusão que o consumo é a coisa mais real dos dias atuais. Não apenas o consumo material. A pedra da vez é o consumo do igual. Vivemos cada vez mais dentro do inferno do igual. Pessoas que não conseguem mais se encontrar dentro de uma sociedade extremamente narcisista e que terminam esgotando-se para o outro dentro de suas próprias sombras. Algo como: “Se não for igual, não serve!”. Tais pessoas amam continuamente a si mesmas, as suas próprias imagens. Justamente por tais atitudes, a cupidez e as experiências eróticas vão sendo minguadas em telas de aparelhos eletrônicos. Vivem da alimentação do próprio ego, negam as diferenças e se fecham para as novas possibilidades, que se encontram nos mistérios e verdades do outro. Isso é, de fato, uma grandiosa barbárie.

     “Não somos mais amigos, não somos mais amantes”. 


Puxando a bola para um conceito mais puro de Filosofia, o Eros (Desejo) pode ser considerado uma espécie de Amigo da Verdade. Tanto os amigos, quanto os amantes jamais deveriam viver no exterior do outro. Muito pelo contrário, devem ser presenças vivas de pensamento. Ambos são categorias vivas! Portanto, para que consigamos realizar o ato de pensar corretamente, devemos manter o compromisso vital com a nossa verdade. Com o quê e com quem de fato é real nas nossas vidas. Sem o Eros (Amigo da Verdade) nosso pensamento perde sua essencial vitalidade, caindo em estados de inquietação, repetição e reatividade.

Essa perda essencial de vitalidade do pensamento gera uma crise de espírito e é causada pela falta de silêncio. Tal ausência termina sendo o principal aniquilador dos processos criativos e, somada a uma vida inteiramente virtual, torna-se um cemitério gigante de mudas que poderiam florescer. Pensamentos necessitam de silêncio. Mas como encarar uma expedição ao silêncio num mundo, cujos inquietos nunca valeram tanto? Como lidar com o mundo virtualmente feliz, virtualmente real e, consequentemente, virtualmente verdadeiro? Contemple-se para depois contemplar. Olhe as entregas, atitudes, palavras e enxergue dentro do seu silêncio contemplativo o que de fato é real e verdadeiro. Tendo a certeza, por outro lado, que o equilíbrio verdadeiro sempre será fluido.

E, foi ali no mais completo silêncio, com a cabeça afundada no “tapete de neve” com olhar fixo para o teto, que enxerguei réstias de luz que diziam que a vida é cheia de momentos mais claros e momentos mais sombrios. Que vaidades não valem de nada perante a verdade. E que a vida real é dura de ser vivida, mas, por outro lado, é linda de ser vivenciada. 



Foto da Capa - Google Imagens
Foto da Pintura - Angela Almeida





terça-feira, 24 de abril de 2018

Superman: Entre a Foice e o Martelo - por André Maranhão



Cartaz soviético sobre igualdade entre os povos e Capa da Edição de Superman – Red Son, lançada nos Estados Unidos.


Na semana passada, o Superman completou 80 anos de sua primeira publicação em Action Comics, quando iniciava sua jornada até tornar-se figura carimbada nos mundos da arte. Nas HQs, no cinema, com o memorável Christopher Reeve (quem nos fez acreditar que “o homem pode voar”), nos ímãs de geladeira, nas capas dos cadernos escolares, no vestuário encontrado em lojas de departamento, bem como nas fantasias das prévias carnavalescas, é certo que o Superman se confunde com a Indústria Cultural, como diriam os mais intensos dos frankfurtianos.

Em 2003, Tom de Santo afirmou: “Com todo respeito ao Mickey Mouse, talvez não exista nenhum ícone americano maior do que o Homem de Aço”. Ainda que o Superman não seja necessariamente o ícone mais difundido, é de longe um dos símbolos que imprime maior imponência pela cultura dos Estados Unidos. Mesmo submetido tantas vezes à vulgarização, capaz de beirar à própria cafonice, convenhamos que, em sua melhor forma, o Superman é um baita de um produto!

Como homenagem ao Homem de Aço, chamo atenção para Superman – Entre a Foice e o Martelo –, uma das HQs mais importantes já publicadas sobre o super-herói. Em termos bem diretos, pode-se dizer que é uma história de fácil aquisição, de fácil leitura e de fácil acesso na internet.

Apresentada originalmente em 2003 sob o título Superman – Red Son, a série causou um verdadeiro frisson entre seus fãs. O trabalho escrito pelo roteirista Mark Millar (autor de outros sucessos como Chrononautas, e do clássico Guerra Civil –, cuja adaptação para o cinema não passa nem pela sombra da espetacular HQ da Marvel) até hoje figura entre a maioria das listas envolvendo o Homem de Aço, aliás, aqui, o “Camarada de Aço”, um oportuno trocadilho utilizado entre a alcunha do Superman e o apelido de Stálin, que, em russo, também remete ao termo “aço”.

Tem-se afirmado que, nos dias atuais, muitas polarizações vertem o ódio à democracia e a supressão do direito ao dissenso e dos meios mais civilizados de diálogo. Diante dessas questões, eu diria que a leitura de Superman – Entre a Foice e o Martelo, é um exercício proveitoso, sobretudo pelas narrativas contidas na HQ servirem de fértil contribuição ante o perigo das visões mais monolíticas veiculadas a todo tempo nas redes sociais.

No seu trabalho em Guerra Civil, Mark Millar trouxe com habilidade a discussão entre o público e o privado, direitos individuais e coletivos, o capital e a intervenção do governo dos EUA na liberdade dos heróis, a ponto de produzir um caldo para fóruns e reavivar a pauta clássica da desobediência civil, no seu sentido mais Henry David Thoreau do termo.

Por seu turno, em Superman, Millar traçou mais uma jogada de mestre em uma abordagem no mínimo “fora da curva”. Comecemos pela questão central que orienta a série: E se o cometa tivesse caído em uma fazenda coletiva da União Soviética, em vez de cair na cidade de Smallville, situada no interior do Kansas? Ora, o Superman seria soviético!


Ao mesmo tempo, o Superman poderia garantir a estabilidade do Pacto de Varsóvia em um mundo alinhado com o modelo comunista? A tarefa se mostra muito complexa ao longo da HQ, haja vista a dissidência dos Estados Unidos e suas orientações mais liberais, somadas aos recursos do Governo para garantir a atividade de Lex Luthor, este aparecendo na história como o grande cientista que procura mecanismos e artifícios para neutralizar o poderio do Superman.


Além do surpreendente antagonismo do governo norte-americano, o Superman precisa lidar com as incoerências que paulatinamente observa dentro do próprio governo da URSS, ao perceber que o regime não é tão perfeito quanto pensara. Some-se tudo isso à rebeldia do Batman, na história surgindo como um contraponto e um insurgente que combate um conjunto de desmando na Cortina de Ferro e que, se torna algo mais do que um personagem, entenda-se uma “ideia” que passa a ganhar asseclas à medida que a história se desenvolve.


O Superman também precisa lidar com as delicadas relações envolvendo a Mulher Maravilha, ora marcadas pela afetividade, ora pela inanição potencial da própria amazona.


Como diria Lênin: “O Que Fazer?”.

É aqui onde a história imprime uma de suas maiores lições: é preciso não apenas interagir, como proteger a quem nos permite o contraditório. Com essa motivação, o Superman encontra um novo frescor para suas missões, para agir em prol de todos e para se livrar da autossuficiência e compreender que as suas convicções não são superiores às convicções das pessoas que encarnam o heroísmo cotidiano sob outros pontos de vista.

Certa vez, John Dewey respondeu a Trótski que o ideal revolucionário peca por se lançar como um fim último, na medida em que os fins humanos são imanentes e, portanto, não são absolutos. Diferentemente, Dewey acreditava que o socialismo e o liberalismo não eram completamente antípodas, mas que poderiam estabelecer “certo namoro”, onde um mundo mais solidário e igualitário pudesse ser reconhecido, tal qual um traço e um próprio desdobramento da sociedade, acima de tudo, liberal.

Concordemos ou não com a premissa de Dewey, algo parece minimamente correto: em um mundo de ódio, como o que se tem visto cada vez mais, colocar ideias diferentes para um flerte até que cairia bem, em vez de apenas apartá-las como se estivéssemos em uma Guerra Fria...

terça-feira, 3 de abril de 2018

Variações em 4/4 - Tribalistas




Na coluna deste mês, a escuta coletiva e os comentários dos editores do blog sobre o disco de retorno do grupo Tribalistas.

Boa leitura!


- Fernando Lucchesi:

Eis que 16 anos após o primeiro álbum, os Tribalistas (Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes) resolveram lançar novas composições. Obviamente, durante esse período a música passou por transformações diversas, principalmente no que concerne ao modo de consumi-la e principalmente com relação à execução radiofônica. Digo isso, pois o disco homônimo de 2001 foi um sucesso estrondoso, dentre outros fatores, pela execução maciça no rádio. Hoje, num rádio dominado por sertanejos, bregas e funks é improvável que esse disco tenha sequer metade da repercussão que o primeiro teve, apesar de ter uma levada pop bem acessível.

O disco tem início com duas faixas que se complementam tematicamente. A belíssima Diáspora que traz em sua letra questões como imigração e identidade (ou falta dela). Um Só propõe o discurso de que somos humanos, independente de fronteiras, ideologia ou religião. Essas duas músicas iniciais são um ótimo cartão de visitas. No entanto, o resto do disco oscila bastante.

Trabalivre utiliza a temática do retirante que chega à cidade grande. Há uma referência bem interessante daquele violão “percussivo”, muito bem utilizado por Lenine e com uma breve citação a Vida de Viajante de Luiz Gonzaga. Baião do Mundo também busca sair dessa fórmula “MPB” que termina por cansar o ouvinte. Feliz e Saudável (apesar de o título parecer propaganda de complexo vitamínico) é outra boa faixa que em alguns momentos lembra o Ben Jor do “sambalanço”. Fora da Memória tem aquela pegada bem “mpbística” (cadenciada, com violão e percussão lenta), típica de composição que foi feita pra tocar em lounges ou na Nova Brasil. Fazem parte desse mesmo estilo Aliança, Ânima e Os Peixinhos.

Esse novo trabalho aponta que os três tribalistas ainda possuem uma vertente pop bem afiada e diversificada, mas, em determinados momentos, se conformam com uma fórmula já batida e cansativa.

- Rógeres Bessoni:

Foi com interesse que me dirigi ao novo trabalho dos Tribalistas, mas após os primeiros 15 minutos, o ânimo já tinha desaparecido para terminar a audição do disco. Embora nunca tenha sido entusiasta do trio, o primeiro disco, lançado em 2002, foi uma contribuição bacana para o cenário da época, com uma junção de caminhos que parecia instigante e com possibilidades de bons frutos: Carlinhos Brown com uma trajetória percussiva, ligada a elementos afro-brasileiros e carregando também a herança musical nordestina, Arnaldo Antunes com o elemento rock and roll e sua poética rica e tão peculiar, e Marisa Monte com sua voz melodiosa e uma carreira consolidada como umas das intérpretes de MPB mais bem-sucedidas de sua geração. Bem, se uma produtiva reação química foi capaz de gerar um bom álbum de estúdio no início dos anos 2000, parece que qualquer “encanto” inicial se dissipou com o tempo.

O novo trabalho é desestimulante do começo ao fim. Embora com momentos melodicamente agradáveis (com destaque para Diáspora), o disco inteiro segue sem nenhum grande impacto e sem fascínio. Não apresentando grandes achados, seja nas composições, seja nos arranjos, emplaca uma sequência de músicas “fofinhas” que, em seu conjunto, repetindo sempre o mesmo padrão de interpretação “açucarada” de Marisa Monte e a voz grave e monocromática de Arnaldo Antunes, termina por ser monótona. O melhor fica por conta das letras, com uma variedade expressiva de temas, que vão do drama dos refugiados (sejam os do Oriente Médio, sejam os inúmeros refugiados da vida cotidiana) em Diáspora, passando pela rotina dura e desumanizante dos trabalhadores (Trabalivre), até a sacralidade da água (Baião do Mundo). Boas construções, algumas rimas criativas, mas, ainda assim, não chegam a salvar o disco, que se mantém no máximo “morno”, em toda a sua extensão.

Enquanto o primeiro Tribalistas foi muito bom (bom, mas também nada genial) no que apresentou em sua época, esse é um daqueles retornos que comprovam que a fórmula se esgotou no primeiro projeto (o que, no passado, aconteceu tanto no rock progressivo, por exemplo). O problema reside na sabedoria de perceber que não se tem uma “banda”, mas que foi um projeto com começo, meio e fim em sua primeira edição, e não mergulhar numa possível saudade de si mesmo, para materializar apenas uma versão pálida do que um dia foi um impulso criativo. De qualquer forma, é mais um momento em que constatamos nosso longo hiato na inventividade musical brasileira. Perdemos a inspiração para as grandes melodias, a engenharia das letras verdadeiramente de peso e a fúria (e/ou a paixão) para as performances incendiárias. Há muito que o fogo de El Duende não incendeia a arte por estas plagas…

- Bruno Vitorino:

Minha vida seria tão mais fácil se eu simplesmente aplaudisse e me deixasse encantar pelo frenesi que rege vastas manadas em busca não de pasto, mas de tendências para consumir, modos de vida para experimentar turisticamente e reconhecimento virtual quantificado em likes nas redes sociais. Mas, como tenho ao menos dez centavos de senso crítico e um “volume morto” (muito vivo) que posso chamar de alma, não consigo me adequar à massa disforme e conformista de indivíduos “transparentes”, para usar um termo de Byoung-Chul Han, facilmente encontrados hoje. Digo isso, porque, se assim fosse, eu deveria ter à época do anunciado retorno dos Tribalistas (foi em agosto do ano passado, mas parece um século, não?) berrado meu entusiasmo em timelines, “curtido, compartilhado e comentado” o disco do grupo da família no WhatsApp ao perfil do Twitter quando do lançamento e estar em contagem regressiva para a “tão esperada turnê” do trio por 10 cidades brasileiras – incluindo este vilarejo – para postar e afirmar meu “bom gosto musical” numa foto com filtro retrô no Instagram.

Aí é que está: como não me interesso por música pelo estilo de vida que ela endossa enquanto mercadoria simbólica, e sim pela substância artística que ela condensa, não encontro motivos para apreciar o último disco dos Tribalistas como obra de arte. Sim, sei que isso renderia discussões epopeicas e intermináveis sobre o conceito de “obra de arte” e a aplicabilidade no trabalho do trio, mas me sinto senil o bastante para não ter paciência em dourar a pílula, certo? Deixo isso para os digital influencers e jornalistas dos cadernos de cultura. Eles vivem disso, eu não.

Avante.

Comentei rapidamente na minha coluna passada que o novo álbum era um trabalho “impregnado por uma adolescência tardia e estagnada”, que se recusa a sair de sua redoma de cristal, fantasias e iPhone X para encarar o mundo. Ouça Feliz e Saudável e Um Só, por exemplo, e veja se me engano. Até mesmo quando abordam temas importantes e densos como o drama dos refugiados, a ocupação de escolas ou a vida dura de retirantes nos grandes centros, a perspectiva é juvenil e abobalhada, como escancaram letras de rara pobreza gramatical e poética. Dê uma conferida em Diáspora, Lutar e Vencer e Trabalivre e novamente diga se me engano. Além do mais, em termos estritamente musicológicos, o disco anda em círculos no que há de mais clichê, previsível e palatável com o objetivo, penso eu, de tornar o produto “Tribalistas” mais facilmente consumível pela maior quantidade de seguidores (fã é coisa do passado) que se possa imaginar. Bem, e como se sabe, seres da internet não gostam muito de realizar esforço. Tudo tem de estar pronto e diluído em papinha.

Por mais que eu não goste, devo admitir que até fazia sentido aquela alegria adolescente e certa inocência púbere do álbum de estreia. Estávamos em 2002, e os tempos eram um misto de otimismo, ingenuidade e euforia. Quinze anos depois, esta mesma atmosfera juvenil e “do bem” presente no novo disco me traz a impressão de que os integrantes do Tribalistas – todos hoje na casa dos 50 anos – não viveram o tempo histórico nem experienciaram a vida em sua multidimensionalidade entre 2002 e 2017. Na condição de tribalistas, foi como se por todo esse tempo tivessem encontrado refúgio na Terra do Nunca e voltado para casa depois de cansarem de brincar com Peter Pan e seus amiguinhos. O resultado é este: um disco para adolescentes de meia idade.

- Giba Carvalho:

Quinze anos é uma eternidade, visto que o mundo é célere e as informações são propagadas e absorvidas como o vento. Pois bem, esse período de tempo foi suficiente para que os Tribalistas jogassem sua fama adquirida pelo primeiro disco (2003) no lixo. Após reuniões secretas, negadas com veemência pelos assessores de Arnaldo, Marisa e Brown, foi lançado “Tribalistas” (2017).

O formato é o mesmo do primeiro trabalho. Porém, neste álbum encontramos um Arnaldo Antunes contido, cantando no limite de sua voz grave e recitando poemas. Nem perto do inquieto vocalista e compositor dos Titãs e dos bons discos em carreira solo. Carlinhos Brown parece oprimido no processo criativo, um mero coadjuvante. Ao que me parece, portanto, Marisa é quem puxa o bonde na formatação do disco, pois não resta dúvida que é uma cantora de altíssimo nível.

Creio também que o trio percebeu parcialmente que o mercado mudou. Vivemos a fase do pós-capitalismo e temos que compreender que o futuro será feito à mão. E é justamente nas quatro canções assinadas pelos Tribalistas (as outras seis são parcerias) que encontramos o ponto forte do álbum. Diáspora, que fala da questão dos refugiados é, com sobras, a melhor do disco. Em sua composição encontramos trechos bíblicos e citações de poemas de Castro Alves e Sousândrade. Melodicamente é muito interessante e é sem a menor dúvida o momento de maior destaque de Carlinhos Brown no trabalho. Lutar e Vencer tem tudo para tornar-se um hino da nova geração pois fala das ocupações das escolas (ainda que de um modo bastante adolescente), movimento este, bastante apoiado por Marisa Monte. Feliz e Saudável é uma canção bastante animada e dançante. Uma espécie de Passe em Casa paraguaia. Baião do Mundo é um tributo a água, tanto a sua presença, quanto a sua ausência no mundo.

O álbum não traz aos ouvintes nada do que não tenha sido visto anteriormente. No entanto, o brilho das boas canções pop do antecessor foi jogado à míngua. Conforme dito por algum pensador contemporâneo: “desta vez, a união não fez a força”, muito pelo contrário. Parece um disco feito exclusivamente para “luaus”, nos quais, as estrelas se divertem mais que o público.

terça-feira, 6 de março de 2018

Cidade Selvagem (FELL) - por André Maranhão

Cidade Selvagem - Publicação atual da Mythos Editora.



Há exatos 10 anos, a série Cidade Selvagem (Fell) foi iniciada pela dupla Warren Ellis e Ben Templesmith. No momento, esse trabalho está suspenso em virtude de outros compromissos por parte de Templesmith. Mesmo assim, na edição mais recente, publicada no Brasil pela Mythos Editora, é possível entender e acompanhar as histórias que estão basicamente fechadas. Apenas uma resposta ou outra escapa, algo que deve ser esclarecido caso a série seja retomada. As publicações de Cidade Selvagem, mesmo interrompidas, receberam indicações para o Prêmio Eisner (um dos mais badalados no mundo das HQs) - a publicação da Mythos pode ser encontrada em alguns sites, inclusive, sob um preço promocional no formato de capa dura.

A trama: Baseia-se no cotidiano do detetive Richard Fell, transferido por motivos não claros, para a cidade de Snowtown. Tal acontecido impede até mesmo Fell de visitar a sua localidade anterior, a qual Fell se refere como “o outro lado da ponte”. Agora residindo na cidade de Snowtown, é preciso lidar com grave falta de detetives disponíveis diante dos casos, o que acentua ainda mais o endurecimento de Fell, e torna a sua rotina deveras assoberbada à medida que a história se desenvolve.

A Cidade: Em Snowtown, o detetive Fell encontra um ambiente lúgubre, repleto de crimes pesados e pela atitude blasé de seus habitantes. Diante de tantas situações criminosas, destaca-se o fisiologismo da cidade, dos seus habitantes que simplesmente ignoram fatos graves, reforçados pelas atitudes de indiferença e das autoridades que remancham processos, investigações, inquéritos, ao se alinharem com práticas corruptas.

Como trabalhar em uma cidade assim? Uma das válvulas de escape encontradas por Fell aparece nos seus desabafos diante de Mayko – possivelmente a sua única amiga em Snowtown. Uma descendente de vietnamitas, dona de um bar praticamente vazio, onde Fell, além de abrir-se sobre as situações cascudas que tem de enfrentar, vai beber um pouco e pedir ajuda da própria Mayko ao longo das investigações.

Roteiro: Assinado pelo grande Warren Ellis (autor de sucessos como Transmetropolitan, Planetary, The Authority) é o ápice da edição, traçada por caminhos impressionantes em torno dos crimes, além dos diálogos ácidos e repletos de ironias finas:


Desenhos: Ben Templesmith aposta em traços que imprimem um tom expressionista aos personagens, ao mesmo tempo em que lança formas mais caricaturais (o que não me agradou muito). Neste tópico, destaco os desenhos dos ambientes, que são muito bons e contribuem para a construção de uma atmosfera sombria nas ruas de Snowtown. Isso pode ser visto, por exemplo, nos momentos mais andarilhos do detetive Fell e nas situações de franca violência urbana, além dos espaços internos, tais como necrotérios, muquifos e orlas desertas.

Cidade Selvagem é um trabalho que vale a pena ser conferido. Trata-se de uma HQ madura, que potencialmente nos leva a pensar sobre as próprias condições de vida nas cidades violentas, endurecidas e cada vez mais indiferentes aos crimes que lhe são perpetrados.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Cavaleiro da Lua (Lunático / Encarnações) - por André Maranhão

Cavaleiro da Lua em um Pop-Magritte.

A primeira coisa que você deve saber para se situar em o Cavaleiro Da Lua 4 e 5 é: desconsidere a numeração das edições! Isso, porque, ao serem publicadas pela Panini em meados de 2017, as duas revistas saíram com as numerações 4 e 5 no Brasil, quando, na realidade, integram uma nova saga iniciada em 2016 e que segue, até o momento, nos Estados Unidos.
Esclarecida a confusão, é bom registrar outra coisa fundamental: não é preciso ter conhecimento prévio sobre o Cavaleiro da Lua para ler ambas as edições publicadas aqui no Brasil. Isso porque, os dois volumes de O Cavaleiro da Lua fazem parte de um reboot feito pela Marvel em 2015, o All-New, All-Different Marvel –, uma resposta a outro reboot feito pela concorrente DC poucos anos antes. O que isso significou? Bem, que uma parte dos personagens icônicos dessas editoras foram “zerados” e deram início a novas sagas, inclusive com enredos diferentes das narrativas mais clássicas e já consolidadas pela mídia.
Sobre as edições: Ambas foram lançadas por um preço acessível (menos de R$ 20), mas que, infelizmente, até o momento estão esgotadas. Oxalá, as edições sejam relançadas e que venham em um formato de capa dura. O volume 4, do Brasil, compreende Moon Knight 1-5, enquanto o volume 5 traz Moon Knight 6 a 9 e Moon Knight 2, de 1980. Atenção aqui! A reedição de Moon Knight 2, de 1980, também pode ser encontrada na série Paladinos Marvel (também publicada pela própria Panini). É verdade que, por um lado, houve redundância ao se trazer parte de uma revista já publicada pela própria editora Panini para as bancas, livrarias e sites. Por outro lado, a inserção do volume 2, de 1980, tem um propósito compreensível, uma vez que busca contribuir para o melhor entendimento sobre o que está a ocorrer com o Cavaleiro da Lua nas histórias, além de tornar a edição mais rica e variada, sobretudo nos quesitos de narrativa e de ilustração.
Sobre o Roteiro: O Cavaleiro da Lua caiu nas mãos de Jeff Lemire, já conhecido por outras realizações, dentre elas o Arqueiro Verde (2013-2014) e Essex County. Na Marvel, Lemire aproveitou que o Cavaleiro da Lua é um personagem completamente maluco para inserir o leitor em um mundo conflitivo e labiríntico, seja nas viagens surreais dos personagens, seja no ponto de partida da trama. Vide a situação kafkiana, vivida por Marc Spector, que de repente se vê dentro de um hospício sem saber como foi parar nele e por qual motivo (além de ser considerado louco) foi bater lá.
Sob o roteiro de Lemire, não espere uma trama mais clichê sobre o que pode ser uma HQ de super-herói, haja vista o tom da narrativa se apresentar muito mais pautado pela subjetividade e transtornos de personalidade, do que pelo viés da ação, da pancadaria, das explosões e companhia limitada. Com um arco repleto de complexidades e incertezas, o leitor passará a duvidar se o aquilo que o personagem vivencia é algo plausível ou apenas parte de sua loucura – um ponto onde se tem grande chance de mergulhos em fluxos intrigantes, à medida que surgem diferentes situações e cenários.
Sobre as ilustrações: Acredito ser o ponto mais alto das edições. Um grande trunfo foi trazer Greg Smallwood em um trabalho sensacional, ao explorar o negative space, ou seja, as partes mais básicas da folha de papel, redimensionando as bandas dos quadrinhos e abrindo mão de limites mais convencionais das cores e dos traços. Vejamos um curto exemplo disso em O Cavaleiro da Lua:
O Negative Space, por Greg Smallwood.
Capa de Moon Knight 1, por Greg Smallwood.

Para coroar ainda mais a qualidade das edições, ao longo dos volumes, um time de mais desenhistas não menos competentes começa a entrar: Wilfredo Torres, Francesco Francavilla e James Stokoe imprimem uma base mais ainda mais plástica, tanto para alternar a parte gráfica das páginas, quanto para sinalizar melhor para o leitor as viradas entre as diferentes cenas e personalidades apresentadas.
Ora diante do ex-mercenário Marc Spector, ora ante o milionário hollywoodiano Steven Grant, o taxista Jake Lockley, o piloto intergaláctico, além do deus egípcio Khonshu, nos deparamos com a pergunta derradeira: Qual entre eles seria o verdadeiro Cavaleiro da Lua? Qual seria o real, ou mais: dentre tantas fendas e facetas, haveria algum real para nós?

sábado, 20 de janeiro de 2018

O Que Ouvi de Interessante em 2017 – por Bruno Vitorino

Musicalmente, 2017 foi o ano em que dei o braço a torcer. Explico. Até então eu era um daqueles colecionadores de discos incorrigíveis (e em extinção) que gostava de garimpar os catálogos das gravadoras e fazia questão de comprar os CD’s para ter fisicamente os álbuns. Entendia que possuir o CD, suporte por excelência da música gravada (nunca fui um purista do vinil), dava um sentido maior à fruição de seu conteúdo, pois ritualizava a escuta e me proporcionava também uma interação material/sensorial com os arredores do som: encarte, ficha técnica, arte gráfica, disco enquanto item colecionável; o que potencializava a experiência da audição. Além disso, o disco físico estava sempre lá, disponível para quando eu quisesse ouvi-lo. Nada mais fácil e prático. Até que eu resolvi experimentar o Spotify. Foi uma revolução.

Para um “viciado em música” como eu, ter acesso a um acervo gigantesco que me disponibilizava tudo (ou quase tudo) o que buscava era um sonho tornado realidade e foi o suficiente para transformar o meu jeito de ouvir música. Discos que eu procurei a vida toda estavam lá, como Skies of America, do Ornette Coleman; raridades do universo jazzístico também, feito Steve Lacy Plays Monk; discografias inteiras de artistas e bandas importantes, idem; selos europeus como a Deutsche Grammophon, Decca Classics e mais recentemente a ECM Records, cujos títulos só chegavam aqui a preço de ouro, igualmente estavam lá. Sem falar na infinidade de outros trabalhos a serem descobertos, algo que estimulava minha atividade de crítico. Mas, para não ser engolido pela plataforma de streaming e me perder na imensidão de playlists, precisei substituir minha empolgação pela disciplina: focava nos álbuns, ouvindo-os inteiros, respeitando sua construção narrativa, a história que contavam. Com isso, desviei dos perigos da banalização da escuta e ouvi muita música como nunca o fizera antes. Desse mundaréu de discos, selecionei quatro que realmente fizeram minha cabeça, para compartilhar com os leitores do blog.

Boa escuta!

PS: “Pra não dizer que não falei das flores”, coloquei na lista um disco que não está disponível no Spotify. Mas, este é um daqueles poucos que é preciso ter. Abro a coluna com ele.

1. Thelonious Monk – Les Liaisons Dangereuses (1960):



Pode-se dizer que este disco é fruto de um maravilhoso acaso. Os produtores Zev Feldman, Francoise Lê Xuân e Frédéric Thomas buscavam por material inédito do saxofonista francês Barney Wilen e por conta disso acabaram batendo nos arquivos de seu produtor nos anos 1950, Marcel Romano. Embrenhados no acervo, localizaram algumas fitas que traziam escrito apenas “Thelonious Monk”. Ficaram encucados. Quando ouviram os rolos, constataram que se tratava da íntegra da sessão de gravação da trilha sonora “perdida” do filme Les Liaisons Dangereuses, de Roger Vadim, proporcionada pelo Thelonious Monk Quartet acompanhado por Wilen, que dobrava o sax tenor com Charlie Rouse. Um verdadeiro tesouro.

O resultado desse achado é um primor de edição e som disposto em um álbum duplo. Cuidado este também dispensado ao livreto, diga-se, que, além de fotos da gravação, traz vários textos sobre a sessão e a importância de Monk para a cena jazzística francesa à época. Já a música é do mais alto nível. Temas do cânone de Thelonious tocados do modo mais espontâneo possível, no calor da hora, com direito a explorações de texturas, suspensão da melodia-tema e incursões às fronteiras do esquema chorus, no intuito, imagino, de dialogar com o filme. Destaque para a contundente mensagem straight ahead de Rhythm-a-Ning, que abre o primeiro disco; a conexão profunda e inesgotável de Monk com o blues expressa na improvisada peça solo Six in One; o arranjo não convencional da balada Light Blue; o desafio cromático descendente e ascendente de Well, You Needn’t; os acordes cortantes tão caros ao pianista; a coesão e swing da seção rítmica; a abordagem contrastante dos tenores nas improvisações.



2. Mônica Salmaso – Caipira:


No ano de 2017, a música brasileira que tem espaço garantido na Grande Mídia foi marcada pelo projeto de Anitta de conquistar o mundo intitulado “CheckMate”. Ousado mapeamento estratégico do mercado pop internacional, o projeto foi iniciado com Will I See You e concluído com chave de ouro, muitas visualizações, likes e buzz com Vai Malandra. Celulites à parte, na música dita “séria”, Os Tribalistas resolveram se juntar mais uma vez e nos brindar com um álbum novo, como se o Brasil já não tivesse problemas o suficiente. Neste disco do trio impregnado de uma adolescência tardia e estagnada, ouvimos versos “poderosos” como “Atravessamos pro outro lado / No Rio Vermelho do mar sagrado / Os center shoppings superlotados / De retirantes refugiados” (Diáspora); “Sou easy, eu não entro em crise / Tenho tempo livre / Pra me trabalhar” (Trabalivre); “Estamos dando aula / De organização / Reformando a sala / Dormindo no chão” (Lutar e Vencer). Sem esquecer também das “Sarradas no Ar” e outras bizarrices que viralizaram país à fora; e sem falar dos artistas locais que, via de regra, só existem para os seus pares, editais de fomento e o Bar Central.

Por sorte, na periferia da produção musical tupiniquim, encontrei abrigo e refúgio no delicado trabalho da cantora paulista Mônica Salmaso, Caipira. Neste disco, a artista nos convida a adentrar em seu imaginário “caipira”, por assim dizer, com sua interpretação do interiorano e seu entendimento desse universo simbólico. Apoiada por um timaço de instrumentistas (Teco Cardoso, Neymar Dias, Proveta, Toninho Ferragutti), Salmaso interpreta 14 canções que sondam as raízes da música popular brasileira e constrói, com isso, um mundo de beleza tão frágil que parece prestes a se quebrar no compasso seguinte. É bem verdade que o excesso de zelo com os arranjos e a empostação podem tornar sua música mais próxima do acadêmico do que do artístico. Isso é um fato. Mas, há tanto respeito e devoção envolvidos em sua busca pelo evanescente da música, algo tão negligenciado hoje em dia, que é impossível não se encantar com a arquitetura do som. Destaque para Água da Minha Sede, famosa na voz de Zeca Pagodinho, que transfigurada em moda de viola revela nuances harmônicas e imagens poéticas que subjazem ante a presença rítmica do samba.


3. Stefano Bollani – Joy in Spite of Everything:


O jazz não nasce do virtuosismo. Na verdade, ele é forjado na espontaneidade da performance pela comunhão de personalidades musicais distintas, pelo diálogo constante de identidades artísticas singulares que convergem e se expressam criativamente num território chamado “tema”. A partir daí, uma dimensão de imprevisibilidade é conferida à música, tornando qualquer resultado concreto insondável, qualquer repetição, impossível. Não à toa, Keith Jarrett afirma que “não se trata do tema, e sim do que você traz ao tema”, e considerando que esse “você” não é o mesmo a cada performance, tudo muda. Compor material temático especialmente para determinados instrumentistas reunidos numa formação específica pode facilitar conexões, incitar outros riscos (sempre tão necessários) e fomentar a desejada eletricidade do novo, mas não pode subverter esse princípio indispensável ao jazz, sob o risco de esvaziá-lo. Compreendendo tudo isso, Stefano Bollani concebeu um álbum brilhante: Joy in Spite of Everything.

O disco nasce do desejo do pianista italiano de incorporar a seu trio dois instrumentistas de rara e particularíssima artisticidade: o guitarrista Bill Frisell e o saxofonista Mark Turner. Assim, percorrendo nove temas escritos por Bollani para o projeto, o quinteto – que eventualmente se transmuta trio, quarteto e duo – embrenha-se nas desconhecidas veredas inerentes a novas composições para, a partir delas, construir um sólido elo emocional e ensejar a manifestação da individualidade de cada músico através de improvisações sobre a forma. É perceptível na atmosfera do disco uma “estética da descoberta” oriunda da espontaneidade da ocasião: músicos que nunca tocaram juntos antes se encontrando pela primeira vez num estúdio para gravar temas novos (logo, inéditos). O resultado é sublime.

Destaque para o balanço contido e idílico de Easy Healing; a reverência às tradições do hard bop em No Pope No Party; os timbres, os voicings, a utilização dos espaços e o fraseado não-prolífico de Bill Frisell (especialmente em Easy Healing e Tales From The Time Loop); o som robusto de Mark Turner, sua mestria na construção argumentativa e na condução extática dos improvisos (especialmente em No Pope No Party e Vale) e suas modulações repentinas do grave para o agudo do instrumento, visando conferir força expressiva a seu discurso (ver Las Hortencias); o comping atento, a capacidade de Bollani em transformar breves motivos em verdadeiras narrativas improvisadas (especialmente na faixa-título) e o seu virtuosismo desprovido de vulgaridade.


4. Meshuggah – The Violent Sleep of Reason:


Intrincados padrões polimétricos, atmosfera carregada pelo peso de guitarras com 8 oito cordas e pelo brutal conflito métrico presente nas canções, vocal gutural furioso e rítmico, letras que erigem utopias negativas sobre declínio da Razão; tudo isso está contido no último trabalho da banda sueca Meshuggah, chamado The Violent Sleep of Reason. Em seu oitavo álbum de estúdio, o grupo se inspira na água-forte de Goya intitulada O Sono da Razão Produz Monstros para denunciar os demônios de nosso tempo nascidos do vácuo deixado pela letargia da Razão iluminista: o terrorismo, a intolerância étnica e religiosa, a banalização da violência, a sedução do tecnológico e também a “passividade participativa”, isto é, sem senso crítico ou reação, do indivíduo envolvido nas circunstâncias dos eventos atuais. Novos monstros de irracionalismo, conformismo e barbárie que envolvem, dominam e aprisionam aqueles que aderem voluntariamente à inércia do pensamento, deixam-se seduzir pela confortável agenda da repetição irrefletida de discursos e ideologias. O que é semioticamente, diga-se, escancarado pelo grupo na arte do disco. Destaque para as letras e o trabalho da bateria de Tomas Haake (especialmente em Clockworks, Born in Dissonance e na faixa-título), as melodias sinuosas e riffs graves das guitarras, a utilização do ritmo enquanto esteio de todo o desenvolvimento temático e do gestual simbólico das composições.